30 janeiro 2008

 

AS BOTAS DO POETA

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Saiu descalço, o Poeta, do mar. Ali mesmo, no chão de areia, sentou-se. Neste momento invejou os fumantes, e esperou o tempo passar. Depois de seco e salgado, calçou-se de mundo, deixando suas botas na areia.

Quem o viu sair por aí, podia apostar que seus caminhos eram incógnitos. O Poeta sabia cada esquina que deveria passar.

Os cabelos errantes lhe faziam lembrar o último amor, de tão frio e tão duro. As mãos, em cada bolso da calça, lembravam-no do amor atual: quente e macio, porém separados.

Olhou para o relógio. Viu as horas só por olhar. Entrou no bar de conhecidos, que logo começaram a acenar. Falavam de muitos fatos e coisas.

- Amanhã será dia de loucura, eu sinto desde já. Visitarei a casa do Samburá. Anotem as suas alegrias e tristezas em guardanapos já usados. Levarei para ele, e as guardará como a carta de um pai ausente.
- Poeta, vai mesmo passar uns dias com o Samburá?
- Sim. Ele passou muitos dias conosco...
- Ora, ele estudava com a gente!!!
- Sim! Retifico: ele passou muitos anos conosco...
- Poeta, você esqueceu os sapatos?
- Não. Claro que não! Se os esquecesse seria louco, e vocês teriam a autorização para fazerem a minha internação. Deixei-as, porque quis, no meio do caminho, na areia do mar, olhando para as ondas.

Risadaria em todos os seis cantos do bar: à esquerda e à direita, em cima e em baixo, dentro e fora.

E o Poeta saiu. Deu um adeus tão pesaroso como quem dá um cheque que não quer pagar. Mas ninguém notou. Os poetas mentem formidavel e elegantemente bem.
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29 janeiro 2008

 

SAMBURÁ

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Chamávamos o Frederico de Fred, depois passamos a chamá-lo de Samburá. Isso porque peixe era a principal refeição do Samburá. Seu pai era lagosteiro, possuía três barcos de pesca e uma parafernália tecnológica -em cada barco- para melhor achar o crustáceo.

Pois bem, o Samburá tinha alguns problemas. Além de comer peixe, ele trabalhava com o pai. Tinha sempre o cheiro doce-cobre dos peixes: sempre impregnado em suas roupas, cabelos, pele, hálito, carro, casa, em tudo.

Quer saber o dia do aniversário do Samburá? 28 de fevereiro. Isso lhe garante, na astrologia, ser do signo de peixes. Já pensou? Eu não creio em astrologia, mas que isso vale nessa história, ah!, vale sim!

Outras: quando íamos ao McDonalds, era exatamente o McFish o pedido do Samburá; pizzas? Sempre de atum.

Pois bem, o tempo não perdoa. O Samburá cresceu e deu continuidade aos trabalhos do pai: as lagostas. Com um empréstimo no BNB somado às economias de alguns anos, comprou e montou uma fazenda em Fortim, aqui no Ceará. Viveiros de camarão. O nome da fazenda? 'Recanto do Samburá'. Bem sugestivo, não?

Com o cheiro que ele tinha, sempre encontrou problemas em arranjar namoradas. As casas de massagem eram os refúgios sexuais do Samburá, enquanto os refúgios emocionais ficavam a nosso cargo mesmo, afinal de contas, éramos os seus amigos. Depois passou a comer as filhas dos pescadores. Até que casou com a filha de um empregado, de um pescador que cheirava a peixe também.

Por que eu escrevi essa história? Explico. Recebi um emeio no dia 12 de agosto, dizia assim:

"Poeta, Pôxa, cara, você é difícil de encontrar. Consegui seu e-mail com (...) Faz 5 anos que casei, meu primeiro filho nasceu semana passada. Terei um Dia dos Pais de verdade!!! (...) Anota os meus telefones todos (liga a cobrar, viado!!!), vamos combinar uma visita aqui em casa, passar um final de semana na fazenda. (...)

Atenciosamente,

Fred Samburá"


É. Deu saudade do jeitão melancólico-quieto-metido-a-feliz do Fred, sempre roendo as unhas e as carnes dos dedos, como se aquilo fosse remédio para alguma coisa. Talvez fosse mesmo.

O cara com cheiro de peixe que, no colégio, sempre -sempre mesmo- terminava as provas antes de todo mundo, e conseguia boas notas. O amigo do mar que ia conosco aos shows, e, provavelmente por sentir-se um estranho -um verdadeiro peixe fora d'água, permanecia eternamente de braços cruzados a olhar as bandas tocarem -mesmo quando essas bandas eram Titãs, Paralamas do Sucesso, Cazuza & Barão Vermelho, Legião Urbana, Engenheiros do Hawai... Ah!, lembro de um show do Roberto Carlos, quando o Samburá deu a sua primeira e única reação: sorrir, dançar e cantar a música "Verde e Amarelo". Creio que aquela manifestação ficará sempre na memória de nossa turma.
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27 janeiro 2008

 

O AVESSO DOS PONTEIROS

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O relógio do Poeta marcava duas e trinta e seis da manhã. O ponteiro dos segundos seguia os ritmos perfeito, circular e anacrônico. Ora, cada minuto conseguia, amiúde, conter sessenta segundos, por horas e dias a fio. Essa sincronia treinada, sem erros, sem mudanças, sem tempestividade, inundou de vazio o coração desacertado do Poeta.

Desceu, o Poeta, no rumo da praia, porque é lá que fica o mar. À noite, o mar é muito mais lindo: possui a aparência dos deuses invisíveis, e em sua água sacra só se entra com os pés nus no chão. Com uma lata de coca-cola na mão, saiu por aí, a pé, feito conquistador de prostitutas ricas.
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24 janeiro 2008

 

O PAI DO CASTOR

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Castor tinha dezesseis anos. Um típico adolescente de classe média baixa. Tinha pai, tinha mãe, tinha um irmão e uma irmã deliciosa. O pai de Castor era representante comercial, e trabalhava viajando pelo interior do Ceará e do Piauí. Raras vezes viajava para o Rio de Janeiro, e mais raro ainda era viajar para os EUA. Sempre por intermédio da empresa.

Em uma dessas viagens, o seu Bené já estava com o carro preparado para seguir Ceará adentro, e cumpriu o ritual de beijos e despedidas frias e automáticas com a família.

Briga de família não precisa de nada para começar. Começou. Era uma chateação boba entre Castor e seu pai. Ainda abusado, seu Bené entra no carro dizendo:
- Pode deixar... Daqui a dois dias eu volto, e eu mesmo resolvo.
- Tomara que nem volte. Que fique no meio do caminho. - respondeu Castor.

Bené não voltou mesmo. Sempre tem um carro na contra-mão para atrapalhar a vida alheia. Eu preciso dizer que Castor nunca mais foi o mesmo? As palavras têm poder ou sincronia de acontecimentos pré-agendados? Descuidos do motorista da contra-mão ou pura fatalidade? Azar do seu Bené ou má sorte do Castor?

Cada um acredita como quer.

Castor sempre se considerou o homicida do pai, pensou até em se entregar à polícia. E entregou-se mesmo. Foi o delegado quem o aconselhou a procurar um terapeuta.

Alguns anos de terapia transformaram o Castor no cara mais boa-praça da vizinhança. Sabe que não tem culpa da morte do pai, só lamenta bastante não tê-lo beijado mais apaixonadamente naquela data que seria a última. Aliás, lamenta mesmo é nem ter beijado o pai antes da viagem para a terra do nunca mais.

O filho do seu Bené tem uma lembrança alegre. Uma pizza que pediram na noite anterior, e saborearam em família: rindo, comendo e brincando. Eles se amavam mesmo.
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23 janeiro 2008

 

ÁDVENA

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Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que eu não conseguia lembrar. O corte em minha mão era violento demais para que eu pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim, cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí. Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na boca da gente. Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos. Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde, mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.
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DIÁLOGO

- Que horas são, Poeta?

- Quase duas.

- E você? Não vai dormir?

- Praquê? Pra cedinho ter que acordar?

- Todo mundo dorme e depois acorda!

- Eu não sou todo mundo, eu sou depois.

22 janeiro 2008

 

Obrigado, Grazzi

Grazzi, minha colega poeta e escritora, mesmo sem saber, incentivou-me a reativar este blog, que mostra minhas tantas tentativas de mal traçadas linhas.

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