25 abril 2008

 

A LEITURA DA CARTA DO MORTO

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Fez-se na sala um silêncio tão ensurdecedor, que o Poeta se sentiu mal com a eleição que lhe fora designada: ser o arauto de um homem morto. Mas de um homem morto que lhe sorrira.

Dentro de um envelope simples, com escrita forte, sete folhas soltas, em sete idiomas diferentes e em sete cores.

A primeira folha era azul. Havia escrito que deveria ser rasgada imediatamente. E assim foi feito. A segunda, terceira e quarta folhas eram verde, amarela e branca, nessa ordem. Deveriam ser colocadas em água fervendo, e depois de desfeitas, serem tomadas como um chá. E foi feito.

Após o chá das letras e das folhas do Ribamar, a sessão continou. Sobravam, então, três folhas escritas. A quinta, de cor laranja, tinha escrito: "Para doutor Frederico, o meu muito obrigado."

A sexta folha era de um amarelo forte, dourado, e havia: "Com todo o meu amor." Era destinada à família do falecido.

Já a sétima, de cor vermelho claro, continha: "Poeta, leia para todos que estão na sala do doutor Frederico. Esta mensagem foi adaptada por mim. Não tive a alegria de conhecer o senhor nem o senhor teve o privilégio de ficar em minha presença por algumas horas e aprender bastante do pouco que aprendi, precisei morrer um dia antes de sua chegada, mas lembro-lhe que foi o senhor quem se atrasou, e foi por causa de Espelho."

O Poeta sentia o sangue esquentar e parar de circular em suas veias, e todos demonstravam temor e tremor. O homem com cara de poucos amigos, de bigodes e sobrancelhas imundas resmungou alguma coisa, mas calou-se envergonhado com o olhar dominador de Fred sobre ele.

- Escutem, então, vou ler o que nos deixou, por escrito, o Ribamar! - disse o Poeta, percebendo os barulhos da afinação e dilatação dos ouvidos de cada um.

"Idnerpa euq es ednerpa odnarre; euq recserc, sogima, oãn acifingis rezaf oirásrevina. Euq o oicnêlis é a polhem atsopser odnauq es evuo amu megabob. Euq rahlabart acifingis oãn os rahnag oriehnid; euq sogima a etneg atsiuqnoc odnartsom o euq; euq so soriedadrev sogima erpmes macif moc êcov éta o Mif. Euq a edadlam es ednocse sárta ed amu aleb ecaf. Euq oãn es arepse a Edadicilef ragehc, sam es arucorp rop ale. Euq odnauq osnep rebas ed odut adnia oãn idnerpa adan; euq a azerutan é a asioc siam aleb an adiv. Euq rama acifingis es rad rop orietni; euq mu ós aid edop res sima etnatropmi euq sotium sona. Euq rivuo amu arvalap ed ohnirac zaf meb à edúas e rad mu ohnirac mébmat zaf. Euq rahnos é osicerp! Euq osson res é ervil! Euq Su'd oãn ebíorb adan me emon od roma; euq o otnemagluj oiehla oãn é Etnatropmi; euq o euq etnemlaer atropmi é a zap roiretni. E, etnemlanif, idnerpa euq oãn es edop rerrom arp rednerpa a reviv."

Terminada a leitura, o Poeta sentou-se, tomou outro trago da cachaça caseira e perguntou sobre o almoço. Fred não sabia nada sobre o almoço, mas mandou providenciar o mais rápido possível, ainda em êxtase interrogativo.
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19 abril 2008

 

A CARTA

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Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.
- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, mas a família já está a caminho. - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.

- Num sei o porquê. - Continuou a cega - Quando chegarem os parentes, os restos do Ribamar já estarão enterrados e fétidos. Será que vão querer abrir a cova, meus D'us?

- Tia, eles vêm pegar documentação, essas coisas pra receberem dinheiro, a pensão da família. - Explicou um trabalhador de mãos marcadas pelo vento, pelo sol, pelas cordas, pelo tempo.

- É! O destinatário há de se manifestar... - Profetizou Fred, e a discussão prosseguia.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem me dar a carta. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava ali.

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.
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12 abril 2008

 

UM MORTO QUE LHE SORRI

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Ao chegar na fazenda de Fred Samburá, o Poeta percebeu o peito feliz. Assim como em dias de chuva, a alegria ou a tristeza -em formatos de cores e cheiros- envolvia o Poeta por completo, desenhando um sorriso em seus lábios ainda ressecados pela farra com Espelho. Continuou por um caminho de piçarra que, com certeza, resultaria no reencontro com o amigo Samburá.

Ao longo do caminho, vindo de encontro ao Poeta, as mercenárias mulheres de preto choravam a alma de alguém. Parou em sinal de respeito, e esperou o cortejo passar. O caixão estava, ainda, aberto, talvez para que todos que por ele passassem, soubessem quem era.

O Poeta perguntou quem era o defunto a um garoto que seguia à parte do funeral:
- Quem era o velho?

- Seu Ribamar. Trabalhava aqui há pouco tempo, era muito religioso, estava doente da cabeça e morreu ontem. Ninguém sabe de sua família nem de onde veio, mas sabemos para onde vai. - respondeu o garoto alegre e excitado por acompanhar um funeral, talvez o primeiro de sua vida. Ou talvez não. Provavelmente funerais lhe fossem comuns, são sempre cortejos.

- E para onde o corpo vai? - perguntou o Poeta.

- Para o cemitério. - Falou quase ironicamente e já saindo depressa, a fim de não se afastar muito da procissão.

O Poeta notou o rosto cinza-amarelo e a expressão fechada dos mortos tristes. Pensou na tristeza do morto quando em vida. Parou o carro, desceu e acompanhou o funeral.

O choro e as músicas melancólicas o fizeram chorar.

Logo em seguida, uma das mulheres de preto, provavelmente a chefe das carpideiras, lhe disse bem perto do ouvido e apertando com força o braço esquerdo do Poeta.

- Pode chorar, mas não venha cobrar as suas lágrimas depois. Somos muitas e o dinheiro é pouco. Sem entender, o Poeta quis rir, e sorriu com os olhos. Olhou para o cadáver já esverdeado por causa do Sol. A gente dá trabalho quando nasce e quando morre - pensou.

Em meio aos curiosos, uma menina chamou a atenção do Poeta. Ela ria com outras garotas, faziam fuxicos umas com as outras e apontavam para o 'forasteiro'. O Poeta riu-se da situação. Resolveu aproximar-se do morto para seguir até a casa principal e chegar antes da hora do almoço. O mesmo garoto que foi abordado pelo Poeta, há poucos minutos, reapareceu e veio com novidades.

- Seu moço, o velho tem família, sim. Já avisaram, e um filho vem pra cá ainda esse ano.

- Ainda esse ano? Por que não vem logo? - Indignou-se o Poeta.

- Deve ser dinheiro...

- Ah, é... Deve ser dinheiro. - Concordou com vergonha.

- Seu moço, minha prima mandou avisar que o senhor é moço bonito.

- Obrigado... Quem é sua prima?

- Aquela de vermelho. Ela é sobrinha do seu Samburá. - Disse apontando para a moça que chamou a atenção do Poeta.

- Diga para a sua prima que ela é muito bonita também. Qual é o seu nome?

- Pedro, mas pode chamar de Bó. Todo mundo aqui me conhece por Bó. Tem gente que nem...

- Não, Pedro, não quero saber o seu nome... Quer dizer, quero saber que posso te chamar de Bó. Agora, Bó, qual o nome da sua prima?

- Qual delas? A que mandou dizer recado ou as outras?

- A que enviou o recado, Bó! - respondeu o Poeta já entendendo o motivo do apelido.

- Ah!, é Ipsílon! - respondeu o garoto.

- Quê? - 'Quê' não! Ipsílon...

- Sua prima se chama Ipsílon? - perguntou o Poeta mais descrente do que espantado. Diga que ela é muito bonita. Agora tenho que ir.

- Seu moço, e quem é o senhor? - Sou amigo do Samburá. Venho passar uns dias aqui, e agora vou almoçar com ele, em sua casa.

- Ah, sim! Intonce pronto, teje explicado tudinho: a casa arrumada, muita fartura e alegria na casa grande. O Poeta riu e perguntou:

- Bó, onde poderei ver Ipsílon outra vez?

- À noite. Ela mora na casa grande também, mas de tarde trabalha na Prefeitura.

Foi olhar o morto para dar adeus. Ao ver, Ribamar era um cadáver verde-esbranquiçado que lhe sorria. Olhou para os lados, pensou em desmaiar. Voltou os olhos para Ribamar que lhe continuava rindo.

O troller do Poeta nunca seguiu um caminho mais rápido. E feliz. E admirado.

- Essa é boa! Ribamar é um morto que sorriu pra mim. - Pensou o Poeta ainda desacostumado com as surpresas da vida.
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09 abril 2008

 

É LOUCURA QUE NÃO SE PERCEBE

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Depois de oito dias seguidos, os pulmões do Poeta e de Espelho precisavam do ar puro, mas não tinham mais tempo. Precisavam voltar. Espelho para as rezas confusas da sua mãe e do povo daquele lugar. Poeta tinha que seguir o caminho em busca da fazenda de Samburá.

Na estrada, o carro seguia vagarosamente: na mente do Poeta, uma nostalgia pré-existente acariciava-lhe o peito amarelo-saudade por causa de Espelho.

O celular toca.

- Olá! - Poeta? Aqui é Fred Samburá! Você chega quando?

- Em poucas horas...

- Está tudo bem?

- Sim. E por aí? - pergunta, o Poeta, percebendo algo de estranho no tom de Fred

- Houve um acidente na estrada... Fiquei preocupado. Resolvi ligar. Chega para o almoço?

- Chego para o almoço.

- Poeta, você chega para o almoço de hoje?

- Sim... Para o almoço de hoje! - responde rindo com alegria, o Poeta.

O celular toca outra vez. Um número nunca visto antes. O Poeta abre a janela de seu veículo, e lança o celular com a força de muitas raivas guardadas.

- Por que você fez isso? - Grita apavorada, Espelho.

- Para quê tanto escândalo?

- O seu celular...

- Sim... Agora não é mais.

- Poeta, você é um louco.

Espelho e Poeta faziam o silêncio mais gritante que poderiam imaginar. O tempo e o carro deslizavam. O veículo foi perdendo velocidade. E foi parando, parando, até chegar em frente ao boteco do homem gordo de traseiro estreito. Antes de Espelho sair, o Poeta segurou-a pelas mãos.

- Por que seu nome é Espelho?

- Porque, em mim, você se via a si mesmo.

- Eu não estranharia ninguém que jogasse fora um celular, e você estranhou.

- E eu não jogaria jamais um celular pela janela de um carro em movimento, e você jogou.

- Então eu não poderia, em hipótese alguma, ver a mim mesmo em você.

- Tanto viu e reconheceu que...

- Espelho, espere!

- Diga!

- Você não acha loucura muita um celular? As pessoas conseguem lhe encontrar em qualquer hora e lugar! Antes de perguntarem se tudo vai bem, perguntam logo onde estão, o que estão fazendo, se vão demorar, se há um telefone fixo por perto, enfim, fazem um questionário, e, só depois dizem o que querem, e antes de se despedirem, perguntam pela saúde e felicidade sem se importarem com as respostas, apressadamente, contabilizando os custos...

- Poeta, os celulares não têm culpa...

- Eu sei... As pessoas não pensam mais. Eu joguei meu celular fora. Para o meu celular, fui um justo juiz. Para mim, para você e quase todos de tão todos, sou um louco.

- Poeta, tenho que ir. Tenho minhas dores para cuidar. Cuide das suas. Encontre Samburá.

- Espelho, você pensa!

- Não. Eu não penso. É porque você está, agora, se olhando em mim.

- Espelho, eu sou louco?

- Muito pouco... É loucura que não se percebe.

E Poeta seguiu pela estrada, rumo à fazenda de Fred Samburá.
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