19 abril 2008

 

A CARTA

.
Mal estacionou, Fred Samburá recebeu o Poeta como um súdito recebe seu adorado rei. O Poeta recebia e dava abraços sem saber a quem. Ora, e muitos nem sabiam quem era aquele homem de nome estranho, mas a fraternidade era comum naquele ambiente. Não havia a menor sombra de dúvida: o Poeta era querido, esperado e bem-vindo naquele lugar.

- Para abrir o apetite, Poeta! - Disse Fred, entregando-lhe uma dose de cachaça. - Isso enquanto o almoço não vem!

- Esse é o Fred que sempre conheci! – respondeu.

Tomando tudo de um gole só, soltou a voz arranhando o ar como gato afiando unhas no madeiro:

- Essa é das boas! E feita por você, hem? - Comentou o Poeta.

- É sim! Mas é hobby. Meu negócio, por ora, é somente camarão... Mas a gente não veio aqui para conversar sobre trabalho, ou veio?

- Não... Mas sempre pode surgir uma oportunidade! - disse o Poeta.

A casa estava cheia. Todos riam e estavam alegres. O Poeta se lembrou do cortejo fúnebre e perdeu-se, por poucos segundos, em pensamentos e sentimentos de cor ocre. Olhando para aquela gente, percebeu que ninguém conseguia rir tão bem como Ribamar, o morto que sorria.

- Poeta! Dê-me um abraço, e deixe de pensar no morto. Os mortos enterram seus mortos. - Gritou Ana, esposa de Fred, já lendo seus pensamentos.

Já abraçados, Poeta sentia os seios de Ana contra seu peito, e o cheiro de gordura que saía da cozinha impregnado no corpo da mulher do amigo, como outrora o cheiro de peixe em Fred.

- O amigo Ribamar só fez sorrir nesta vida, morreu e ficou com cara de defunto triste. – disse Ana.
- Nenhum defunto é triste, principalmente depois de morto. - Disse uma adolescente com síndrome de Down.

Ninguém reparava na garota, mas ela olhava para o Poeta. Ele lhe deu atenção, ou por curiosidade ou por dó. Porém, ficou sem entender o "principalmente depois de morto".

- Pobre Riba! Grande contador de histórias: parece que andou por esse mundo quase todo a pé! E morreu aqui...

- Mas ele deixou uma carta! - Falou um rapaz que tem um olho de cada cor.

- Que dizia na carta? - Perguntou o Poeta.

- Isso ninguém no mundo num há de saber. - Resmungou um homem com cara de "poucos amigos", com cheiro de peixe e sol, cujo bigode e sobrancelhas eram tão grandes e tão imundas que pareciam unir-se a qualquer instante.

- Ele deveria ser um andarilho, sempre em busca de caminhos longos, mas a família já está a caminho. - Falou uma velha cega de bengala, provavelmente mãe de algum trabalhador.

- Num sei o porquê. - Continuou a cega - Quando chegarem os parentes, os restos do Ribamar já estarão enterrados e fétidos. Será que vão querer abrir a cova, meus D'us?

- Tia, eles vêm pegar documentação, essas coisas pra receberem dinheiro, a pensão da família. - Explicou um trabalhador de mãos marcadas pelo vento, pelo sol, pelas cordas, pelo tempo.

- É! O destinatário há de se manifestar... - Profetizou Fred, e a discussão prosseguia.

A mente do Poeta ficou melada, arejada e pegajosa como a alegria do sexo, e finalmente disse, depois de tomar outro trago:

- A carta é para mim!

Silêncio geral. Todos os olhos, inclusive os da velha cega, que parecia enxergar mais que todos ali, olharam aquele homem de nome esquisito.

- Ribamar estava no caixão. A tampa estava aberta. Quando o vi, ele estava com cara de defunto que sofre... Depois, ele sorriu para mim.

- O senhor vai desculpando aí, mas isso pode ter sido visagem, sol, calor, fome... Defunto é defunto. Defunto não chora nem ri. – Adiantou o rapaz de olhos coloridos.

- Podem me dar a carta. Agora sei que a mensagem é para mim. - Disse o Poeta, com tamanha autoridade que Fred mandou um menino manco trazer um baú acorrentado para a sala. A carta do Ribamar estava ali.

Após aberto, o Poeta notou que a carta continha sete páginas. Todas pareciam dizer a mesma mensagem, mas eram escritas em sete idiomas diferentes. Os olhos do Poeta ardiam e fumaçavam, fato que causou estranheza na casa de Fred.

- Ribamar escreveu para mim!? - Assustou-se, em pensamentos, o Poeta.

O silêncio foi cortado pela voz doce-rouca e áspera-aveludada do Poeta, que iniciava a leitura da carta de Ribamar, o morto que lhe sorrira.
.

Comentários:
vc me deixou curiosa pra saber o conteúdo da carta...
Escreve logo.
 
risos... Weynia, a curiosidade é um aprendizado que fiz com as novelas diárias da dementadora Rede Globo.

Mas fique aí. A carta chega já, já. E o conteúdo dela... Aguarde, sim?

Beijocas.
 
rsrs, é, terminou meio capítulo de novela no sábado. uma curiosidade, rod, já está tudo escrito aí "em algum lugar" ou vc cria o post seguinte a partir do anterior? quero dizer, seu momento de criação é quando vc senta no computador ou vc vai escrevendo, escrevendo e só então, quando concluído, vc posta? : !

mais vinho, por favor!!
 
Poxa, cara,
bem interessantes os textos, viu
parabéns....vez por outra arrisco uma crônica, mas nada que se faça valer muito....eh
repertório invejável
 
RESPOSTAS:

Caro Emmanuel, tenho alguns contos escritos, sim. No caso destes postados aqui, eles aconteceram em uns 10 dias - ininterruptos - de escrituras, e mais uns 100 dias de lapidação, de carpintaria literária, como diria o grande Gabo.
Com o blogue, decidi 'dividir' os textos em capítulos, para facilitar a postagem. Os textos ficam longos e difíceis de ler, mas é exatamente isso que faço: textos para eu ler. Ora, em nossa profissão, caro colega, escrevemos para os outros. Aqui eu descanso, e ainda tomo vinho sem esquecer meu cigarro Carlton, um raro prazer.
 
Andreh, rapaz, venha mais vezes por aqui, e deixe seu comentário crítico e feroz, além de ácido e azedo.

O blogue é nosso.
Nenhum comentário será, em hipótese alguma, censurado.

Valeu pela participação.
 
Esse comentário do Rodrigo a respeito da falta de censura do Blog tem um certo veneno porque eu cortei um post dele no meu.
Pois o meu tem censura e assumo!
 
HAM,

VAI TE FUDER.
 
Postar um comentário

Assinar Postar comentários [Atom]





<< Página inicial

This page is powered by Blogger. Isn't yours?

Assinar Postagens [Atom]