23 janeiro 2008

 

ÁDVENA

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Não era noite nem madrugada. Não era dia também. Não havia Sol, e as luzes da cidade ainda estavam acesas. Se apagadas, o cenário não mudaria de cor. O escuro do céu já havia ido embora.

A minha gravata estava com o nó frouxo, o aperto na garganta estranhava tudo em mim. Passei o indicador pelo colarinho, já frouxo, para aliviar ainda mais o aperto daquela hora em que o tempo se perdeu.

Um vento frio e morno adentrou minhas narinas. Estava à beira-mar. Era incomum para mim, mesmo assim tirei os sapatos e as meias. Fui molhar os pés na água do mar. Um cheiro doce veio das espumas das ondas. Fiz as mãos côncavas retirarem água para lavar o rosto, e senti o ardor na mão esquerda: havia um rasgo de que eu não conseguia lembrar. O corte em minha mão era violento demais para que eu pudesse esquecer. Meu paletó estava rasgado, sutilmente rasgado, ninguém perceberia, porém seria o suficiente para que eu não ficasse à vontade em público.

As luzes não mudaram em nada. As mesmas negritudes já idas e as claridades das ruas estavam inalteradas. Passou um negro por mim. Nem me olhou, minha presença era desnecessária, chamei por ele, perguntei-lhe as horas, e, olhando para mim, cuspiu em minha direção e riu a risada dos sodomitas. Uma risada obscena e grosseira.

Lembrei da garota que estava comigo há pouco tempo. A garota com quem saí. Jantamos e transamos. O sexo mais enfadonho que prazeroso. Lembrei de todos os momentos pelos quais passamos juntos, e meu estômago reclamou enjoado. Uma mistura de batom, gordura e apetite permaneciam em minha boca.

- Vinho! Eu preciso de vinho!

Entrei em um café sem atendentes, e tomei duas taças de vinho. Não havia ninguém, levei comigo o restante da garrafa de vinho italiano, sem a taça, a fim de beber no gargalo. Na saída, lembrei de que estava sem sapatos, mas disso não sentia a menor falta. Não tinha mais a menor importância para mim, o rasgo do meu paletó. Encontrei um espelho e fitei-me nele.

Olhei-me por alguns minutos. Fiquei olhando aquele que eu sentia ser eu. E o era, de fato. Os olhos saltavam de tamanho sem o meu consentimento, assim como são os olhos das pessoas loucas. Meus lábios possuíam manchas de sangue, que qualquer um poderia confundir com os tons que os vinhos vagabundos deixam na boca da gente. Definitivamente não era vinho. Disso eu sabia muito bem. Olhei outra vez minha mão esquerda, e lá estava o corte que fazia doer e arder.

- Onde estava a garota com quem fiz sexo?

Não havia ninguém na rua. Alguns carros, alguns cafés e restaurantes abertos. Nenhum garçom.

Olhei novamente o espelho, e lá estava quem decerto seria eu. Os olhos alternavam de tamanho, ora arregalados, ora diminutos e tímidos. A minha barba crescera. Eu poderia apostar que a tivera feito no barbeiro, na última tarde, mas o espelho não pode mentir: estava até aqui de barba por fazer.

O vinho acabou, e lancei a garrafa fora com tamanha força que espatifou no poste primeiro que encontrou. Um grito cortou o silêncio. Depois de olhar várias vezes para os lados, à procura do dono do grito, caí em mim: eu mesmo gritei. Eu mesmo me cortara na mão. Eu mesmo não fizera a barba. Eu mesmo saí de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei.
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Comentários:
"Eu mesmo saí de mim em uma tarde de chuva, e nunca mais voltei."

Fugir de si... das nossas vidas... de vez em quando é bom!

E não diga mais que não vim aqui... olhe seus comentários!
hehehehehehehehe

Gostei dos textos!!

Poeta!

Beijossss
 
Um motivo para reativar o blog é que literatura, jornalismo, conhecimento e vinho, claro, são arte e história, amor e paixão, vida e convívio, vício e virilidade criativa. Desafios constantes - o combustível da raça humana. A arte é pra ser socializada. Mesmo que feita pelas nossas mãos, ao mundo pertence.
Deixo aqui o endereço do meu blog (em conjunto com Tatiana Félix): jornalismoliterario.spaceblog.com.br
Grande abraço,
 
Conto ou poesia? Consegues mesclar um pouco de cada gênero. Os detalhes minuciosos, a subjetividade, as metáforas instigantes. Bonito texto, muito bem escrito. Parabéns!!! Beijos.
 
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