03 março 2008

 

FEBRE

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A manhã avançava rápida, e os ponteiros do relógio do Poeta seguiam essa sangria sem nó. Ainda com o gosto de vinho e de boca nos lábios, parou em uma venda a fim de tomar um café com leite e comer umas tapiocas.

Entrou. Sentou. Pediu. O dono do boteco-de-beira-de-estrada era um gordo de traseiro estreito, e que bebia cerveja quente com coca-cola gelada.

Enquanto comia, o Poeta sentiu a febre chegar em seu corpo. - Isso lá são horas de pegar uma febre? - pensou, fatigado e incomodado.

Seus pés estavam começando a pesar, e ficou com medo de nunca mais sair dali.

A filha do homem gordo saiu por uma porta azul, mas verde de tão antiga. Era uma moça bonita, na alegria de seus dezoito anos. Trazia à boca uma chupeta de bebê. O Poeta não estava sentindo-se muito bem, e como seus pés já estavam livres, foi lavar o rosto e as mãos. A febre e o calor do café afetaram-no: saía fumaça da testa do Poeta; uma fumaça espessa e gordurosa.

O gordo chamou pela mulher e a filha que tinha a chupeta entre os dentes. Sem tirar os olhos do Poeta, cochichou alguma coisa inaudível para as duas, que entraram rapidamente para dentro de casa, e logo-logo voltaram com cera de carnaúba nas mãos e uma garrafa com água suja. A mulher cantava algum hino cristão em húngaro.

Chamou a atenção do Poeta, o homem gordo, que apontou para uma cadeira de balanço, e fez, autoritariamente, sinal para que sentasse. Obediente e estranhamente direcionado por estranhos, o Poeta sentou e ficou a esperar as ações dos donos do boteco. A filha do gordo chamou um tal de Arimatéia, aos gritos, pela janela do bar. O Poeta pôde escutar a resposta do Arimatéia:

- Tô chegando!

A fumaça espessa e gordurosa que saía da testa do Poeta enchia o ambiente de espanto. Arimatéia chegou sorrindo e rezando, e trazia, horrivelmente, uma faca enfiada nas costas. Pelos olhos do Poeta, Arimatéia entendeu a pergunta e respondeu:

- Em 1958, essa faca me foi enfiada nas costas por um inimigo de Nosso Senhor Jesus Cristo. A promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo seria a minha salvação, mas traria essa faca comigo, para que todos possam ver e crer.

A cada dois minutos, Arimatéia benzia-se, e, de quando em quando, após benzer-se, beijava as costas da mão direita, erguia os olhos, e parecia que enxergava alguma coisa ali.

O Poeta percebeu que as costas do Arimatéia tinham ataduras, pois o sangue não parava de descer. A ferida nunca cicatrizou. A mulher do homem gordo, com as mãos cheias de cera de carnaúba, apertava as têmporas do Poeta. Quanto mais a velha apertava, mais a fumaça saía, e o sangue das costas de Arimatéia escorria com mais velocidade, até formar uma pequena poça no chão.

A menina da chupeta, que já havia acendido uma vela, estava ajoelhada, rezando o terço e mordendo com mais força a borracha da chupeta. A fumaça da vela misturou-se à fumaça do Poeta. Quando a vela chegou ao fim, o Poeta escarrou um novelo de cabelos compridos, e, instantaneamente, a fumaça parou de sair de sua testa. A febre também o abandonou. Sentindo-se melhor, o Poeta agradeceu sem mesmo entender o por quê de tudo aquilo.

Com a alegria e a aridez de um arcipreste, Arimatéia saiu, mas antes se benzeu e benzeu a todos. Desta vez, não beijou as costas da mão, e sim deu cinco beijos rápidos na ponta de cada dedo da mão direita.

O Poeta pagou o que devia. Saiu. E sem entender, mas aceitando a condição de poeta, dirigiu-se à casa de Samburá.

Outra vez, a certeza de alegria nos dias seguintes era-lhe confirmada pela fumaça que lhe saíra da testa e pela faca nas costas de Arimatéia.

- Estranho. Esse mundo é tão estranho... Não vale a pena tentar entendê-lo: ou se entende ou se vive de amores e letras - falou em alta voz, o Poeta.
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Comentários:
è mesmo dificil de entender... prefiro outro vinho(rsrsrs).
 
POETA,
Ai..."deu saudade o jeitão melancólico-quieto-metido-a-feliz..." que tens.

Nem sei "que horas são, Poeta?
E você?... vai dormir?
Eu pergunto:_"Praquê? Pra cedinho ter que acordar?
Aliás, "todo mundo dorme e depois acorda!"...e tudo se renova.
Somos aquilo que sempre deve superar-se a sí mesmo.
E eu vivo nesse agora!

Poderia dizer-te:
_ "Eu não sou todo mundo, eu sou depois" e concordo quando dizes :
"_Estranho.
Esse mundo é tão estranho...
Não vale a pena tentar entendê-lo: ou se entende ou se vive de amores e letras..."

Quisera ser "Poeta"...e falar como falas !
Amei teu vinho...
Claro , beberei outros mais.
Abraçopoético,
M. Lia
 
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